Carta de Ouro Preto 2015

Nós, integrantes da Rede Latino-Americana de Educação, Cinema e Audiovisual – Rede KINO, presentes na 10ª Mostra de Cinema de Ouro Preto – CineOP, de 18 a 23 de junho de 2015, reunidos no VII Fórum da Temática Educação, nos dirigimos aos órgãos públicos, instituições e autoridades representantes da sociedade civil, responsáveis pela criação, implementação e fortalecimento das políticas públicas da educação e do cinema brasileiro.

Na carta produzida no final do encontro do ano passado, explicitamos alguns pontos que nos pareciam fundamentais e os dirigimos às instituições responsáveis com a expectativa de que tais colocações pudessem reverberar em algumas iniciativas. Entretanto, a tramitação do Projeto de Lei 13.006 proposto pelo senador Cristovam Buarque, e sua consecutiva sanção pela presidenta Dilma Rousseff, exigiu de nós uma imediata articulação. A nova lei, a saber, ainda a ser regulamentada, obriga a exibição de 2h mensais de cinema brasileiro em todas as escolas da educação básica do Brasil. Em todas, entendemos, segundo censo escolar de 2013 (Ideb), um contingente que ultrapassa 190.000 escolas nas cinco regiões. Destas, cerca de 33% não possuem sequer televisão e embora a internet atinja quase 60% das escolas, apenas 48% dispõem de banda larga, infra-estrutura básica para a exibição de filmes. Um número bastante expressivo de escolas, portanto, está imediatamente à margem do que propõe a Lei 13.006.

Assim, entendemos a necessidade de que no Fórum deste ano nos dedicássemos com bastante atenção ao que diz a Lei. E, ainda mais, quais são algumas das ações práticas possíveis para que sua aplicação não seja mais uma das tantas propostas que recaem arbitrariamente sobre toda a comunidade escolar, de maneira vertical. Ao mesmo tempo, existe um longo caminho percorrido não apenas pela Rede KINO, mas por todos aqueles que vem se dedicando às pesquisas de cinema e educação no Brasil e na América-Latina. Caminho este que deve ser novamente enunciado ao governo e às autoridades responsáveis pela regulamentação da Lei, no sentido de que sejam ouvidas atentamente as demandas daqueles que também ocupam as salas de aula, as coordenações pedagógicas, as universidades, as direções escolares e também os cineastas, cineclubistas, produtores e agentes do setor.

Entendemos que a aplicação da Lei e a presença do cinema na escola não deve atender à exigências e modos de produção que deem continuidade às práticas impostas pelo mercado. Não se trata, portanto, de uma política de formação de plateias, como vem sugerindo alguns dos importantes representantes dessa indústria cinematográfica. Práticas de alteridade, formas de perceber e inventar o mundo e a si mesmo, conhecimento que se produz com a experiência, o cinema na escola é uma ação essencialmente política. De uma política fortemente marcada por princípios educacionais e o reconhecimento de uma educação compartilhada que compreende o processo e não apenas seus resultados, que estimula a autonomia e o protagonismo dos estudantes e oferece mais elementos e ferramentas para que os professores possam potencializar suas práticas de ensino.

Reivindicamos a circulação de um vasto universo de outras imagens realizadas no país, que refletem também nossa diversidade étnica, geográfica, cultural, social, e não representam a força hegemônica e centralizadora dos grandes conglomerados midiáticos e as agências de comunicação. Produções independentes, amadoras, coletivas, financiadas ou não pelo Estado, que certamente revelam as contradições e contrastes do nosso povo, reconhecendo nossas diferenças.

Aqui, retomamos alguns dos pontos da carta de 2014 e exigimos dos órgãos governamentais, que representantes da Rede KINO e seus membros constituam as mesas e grupos de trabalho de debate para a regulamentação da Lei 13.006. Tal exigência se justifica considerando o acúmulo de mais de quatro décadas de experiência na reflexão e invenção no campo do cinema e da educação por meio da participação ativa de membros representantes de universidades, escolas, cineclubes, produtoras, ONG’s, órgãos públicos de todo o Brasil.

Defendemos então, para a aplicação da Lei, mecanismos e soluções que não financiem a iniciativa privada do setores de produção, distribuição e exibição de filmes e audiovisuais. Sugerimos formas colaborativas de organizar o que já existe; de tornar visível o que já é público; de enunciar os direitos de todos ao acesso desses filmes já produzidos; de garantir a integridade dos espaços já existentes para que os encontros entre o cinema e a educação sejam frutíferos. E, sobretudo, formas abertas e múltiplas de autonomia para os professores e toda a comunidade escolar, garantindo que a inclusão do cinema brasileiro nas escolas seja orgânica e responsável, atenta ao caráter ético, estético e político do cinema e da educação brasileira.

Assim, destacamos:

1) Acervo Audiovisual Escolar Livre;

Sabemos que há décadas os filmes no Brasil vêm sendo produzidos com recursos públicos. Exigimos que todo e qualquer filme feito com parcial ou total fonte de recursos da União, dos Estados e dos Municípios, seja devolvido às escolas após seu período de exploração comercial. Não há justificativa para o paradoxo de que, agora, com a exigência da Lei 13.006, sejam comprados pacotes de filmes com dinheiro público. Duplo investimento do Estado ao pagar por aquilo que já está quitado. Dada a obrigação de exibir filmes na escola, torna-se obrigação também das agências reguladoras inserir em seus editais e leis de incentivo contrapartidas em números de cópias físicas e arquivos digitais para composição do acervo escolar, sem fins lucrativos.

Com relação ao conteúdo deste acervo, defendemos que sejam privilegiados filmes que garantam a diversidade geográfica e memoria histórica do país, com critérios mais culturais que comerciais, considerando que a circulação destes últimos já está assegurada pelo mercado. Nesse sentido, torna-se necessária a preservação do patrimônio audiovisual brasileiro.

2) Chamada Pública para Disponibilização Gratuita de Acervos Públicos e Privados por Realizadores, Artistas Visuais, Produtoras, Acervos Públicos e Privados, Cinematecas e demais órgãos;

A sugestão pela criação de um Acervo Audiovisual Escolar de Filmes Livres vem acompanhada da proposta de publicação de uma chamada pública voltada a realizadores, produtoras, acervos públicos e privados, televisões públicas, cinematecas, entre outros. Existem inúmeros filmes que já podem ser incorporados por esse acervo livre. Não se trata de fomentar a produção, ela já existe em diversas janelas e formas de acesso. Algumas, inclusive, de maneira ilícita, o que comprova a necessidade de revisão da Lei dos Direitos Autorais quando se trata da difusão de bens simbólicos para fins educativos.

Em pouco tempo, acreditamos que este acervo possa se tornar uma enorme ferramenta educativa, com milhares de filmes, algo jamais produzido para tamanha escala e com tal volume. Insistimos que não é uma demanda pela criação de um edital que ofereça contrapartidas àqueles que detêm os direitos de exploração dos filmes, mas uma chamada que se dirija aos que compreendem que esta é uma forma de retroalimentar simbolicamente o investimento público ao audiovisual brasileiro e que esses filmes também devam compor o imaginário da vida escolar, como os livros e demais recursos pedagógicos.

Isso nos leva a discutir a própria noção do que é cinema, entendido aqui como uma forma expandida que excede a concepção fomentada pelo mercado e as salas multiplex. Possuímos uma quantidade inestimável de imagens que pode ser muito bem incorporada pelos professores e explorada em suas especificidades estéticas, temáticas, discursivas, absorvendo filmes provenientes das mais diversas regiões do Brasil.

3) Plataforma digital de exibição;

Acreditando no compromisso firmado pelo Estado quanto à implementação da Banda Larga em todas as escolas do Brasil, proposta para 2014, sugerimos a criação de uma plataforma virtual para exibição e download dos filmes, sem fins comerciais.

Afirmamos a necessidade de garantir o acesso aos filmes de forma virtual, ação esta que pode minimizar amplamente a produção de cópias físicas, reduzindo o montante dos recursos dispensados para a criação do Acervo.

4) Catálogo de filmes em DVD;

Para o contingente de escolas que não possui internet ou banda larga, inviabilizando assim o acesso à plataforma digital, recomendamos o fornecimento de cópias físicas em suporte DVD. Apesar de obsoleto e de extrema fragilidade, o DVD ainda é para muitas das escolas o principal modo de acesso aos filmes.
As escolas devem ter completo e irrestrito poder na seleção e curadoria dos filmes, a partir do Acervo Audiovisual Escolar Livre, ainda que seja necessário restringir o número de filmes diante do imenso Acervo possível, desde que garantida sua variedade e tempo suficiente para o cumprimento da Lei ao longo do ano letivo.

5) Acessibilidade e recursos assistivos;

Enfatizamos a urgência de se pensar a produção de novos filmes e projetos audiovisuais com a linguagem brasileira de sinais (LIBRAS) e o sistema de audiodescrição, em conformidade com a Instrução Normativa nº 116, de 18 de dezembro de 2004 da ANCINE, a saber:

Art. 1º.Todos os projetos de produção audiovisual financiados com recursos públicos federais geridos pela ANCINE deverão contemplar nos seus orçamentos serviços de legendagem descritiva, audiodescrição e LIBRAS – Língua Brasileira de Sinais.

§ 1º.Entende-se audiodescrição como uma narração, em língua portuguesa, integrada ao som original da obra audiovisual, contendo descrições de sons e elementos visuais e quaisquer informações adicionais que sejam relevantes para possibilitar a melhor compreensão da obra.
§ 2º.Legendagem descritiva corresponde à transcrição, em língua portuguesa, dos diálogos, efeitos sonoros, sons do ambiente e demais informações da obra audiovisual que sejam relevantes para possibilitar a melhor compreensão da obra.
§ 3º.Entende-se como Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS a forma de comunicação e expressão, em que o sistema linguístico de natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria, constitui um sistema linguístico de transmissão de ideias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil.

Embora reconheçamos o pequeno número de produções audiovisuais brasileiras comprometidas com a acessibilidade plena para pessoas com deficiência visual e auditiva, é imprescindível a catalogação das obras já existentes com tais recursos imediatamente. Desse modo, apontamos para um horizonte pedagógico capaz de ampliar os processos inclusivos em direção a uma equidade que contemple os direitos cidadãos de todos os brasileiros.

6) Infra-Estrutura;

Pensamos que a presença do cinema na escola implica em garantia de condições essenciais de infraestrutura, tais como:

– existência de espaços adequados à exibição;
– equipamentos de projeção de imagem e som de alta qualidade, fundamentais para a fruição adequada dos filmes e execução plena das tecnologias assistivas;
– climatização dos espaços de exibição, especialmente nos estados afetados por condições climáticas que possam inviabilizar a exibição dos filmes;
– manutenção / estímulo à preservação dos equipamentos e tecnologias permanentes adquiridas.

7) Comunicação e Divulgação;

Fortalecendo a implementação do Plano Nacional de Educação nas suas 20 (vinte) Metas e da Base Nacional Comum da Educação, indicamos que a Lei 13.006/2014 seja objeto de ampla visibilidade, nos mais diversos fóruns nacionais, regionais e locais, bem como pelas Secretarias de Educação, Ministérios, Universidades, Instituições da Sociedade Civil, Sistemas Públicos e Privados de Ensino e Meios de Comunicação, a fim de apresentar, divulgar e problematizar a Lei e sua consecutiva regulamentação.

É necessário também estimular o trânsito entre a escola e os museus de cinema, cinematecas e cineclubes, incorporando a cultura cinematográfica e a influência de seus agentes e a historicidade do cinema

8) Formação de professores;

Partimos do entendimento de que a formação docente não se esgota no âmbito da educação formal, tendo em vista a alta complexidade de todo o processo formativo, notadamente aqueles que tensionam saberes e práticas de diferentes campos do conhecimento. Assim sendo, apontamos a necessidade da consolidação das parcerias já existentes entre Universidades, escolas de Educação Básica e toda uma variada e extensa gama de instituições e iniciativas que compõem este processo formativo, bem como, do estabelecimento de novas redes de formação.

Afirmamos a perspectiva de se trabalhar com obras audiovisuais na escola como experiências estéticas portadoras de conhecimento próprio, em diálogo com diferentes conhecimentos disciplinares. O cinema na escola coloca entre outras questões as visualidades que temos e aquelas que pretendemos construir com a educação escolar.

A REDE KINO, rede que articula universidades, organizações da sociedade civil sem fins lucrativos, cineclubes, escolas entre outras instituições de saberes e práticas em cinema e educação, se compromete a colaborar com os processos de formação a partir de demandas concretas e realidades específicas que definem formatos próprios do trabalho colaborativo.

É preciso também pensar em formas de valorizar e respeitar a organização do trabalho dos professores e considerar a intensificação da atividade docente a partir das novas demandas exigidas para a escola na contemporaneidade. Assim, a Lei 13006 deve ser cumprida dentro da carga horária dos professores.

9) Sistematização de metodologias;

Já há um saber bastante avançado em torno desta temática. Este saber está traduzido em pesquisas acadêmicas, teses, dissertações, artigos, livros, sistematizadas por fóruns, seminários, colóquios, congressos e eventos que vem reunindo gradativamente professores, estudantes e outros agentes.

Dessa forma, recomendamos a discussão, problematização e sistematização de metodologias voltadas para o trabalho com audiovisual no currículo escolar, compartilhando estratégias metodológicas já desenvolvidas e fomentando novas possibilidades pedagógicas no campo do cinema e educação.

Destacamos a pertinência da abertura de editais públicos que garantam a transversalidade de recursos ministeriais, com o objetivo de fomentar novos projetos comprometidos com a formação docente para essa nova realidade. Novamente, cabe à universidade e seus pares organizar este saber e, ainda mais, criar espaços de interlocução com os professores da educação básica estimulando a participação ativa na construção desse conhecimento.

10) Fortalecimento de uma política latinoamericana de cinema e educação;

Tendo em vista os princípios inspiradores e estruturantes da Rede KINO, desde sua fundação até os dias de hoje, é imprescindível que haja o fortalecimento contínuo e sistemático desta Rede, de modo a viabilizar a troca de experiências; a articulação para criação de trabalhos conjuntos e o intercâmbio entre os países latinoamericanos, reafirmando o compromisso de todos os membros da Rede com o lugar do cinema e demais formatos do audiovisual nos diferentes projetos educativos.

Ressaltamos a importância do envolvimento das mais diversas instâncias governamentais dos países que integram a Rede, no sentido de comprometer o Estado como agente decisivo para o fortalecimento e continuidade de politicas públicas relacionadas ao âmbito do cinema e da educação, possibilitando um acesso amplo aos bens culturais produzidos na esfera do audiovisual.

*

Por fim, enfatizamos que esta carta encaminha ações e propostas, fruto da reflexão e crítica construída de forma coletiva pelos membros da Rede KINO nos últimos anos. Cabe ao Estado e seus agentes certamente compreender a relevância desses elementos e oferecer espaços para seu debate, crítica e transformação.

Convidamos também os outros setores e seus representantes a compartilharem conosco suas impressões e posicionamentos a respeito da Lei 13.006, de modo que a regulamentação venha ao encontro do desejo de todos e não reflita novamente a expressão da vontade de poderes hegemônicos. Ao encontro daqueles que acreditam e investem suas forças diariamente na transformação da educação no Brasil.

Ouro Preto, 22 de junho de 2015.

Rede Kino
Rede Latino Americana de Educação, Cinema e Audiovisual

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